sexta-feira, 10 de abril de 2009

Para o professor José Alves Fernandes, o fortalecimento da língua depende mais de investimentos em educação do que de reformas ortográficas




ENTREVISTA

Aventura lusófona
Para o professor José Alves Fernandes, o fortalecimento da língua depende mais de investimentos em educação do que de reformas ortográficas


Dos oito países em que a língua portuguesa é falada, seis estão localizados na África. Nos últimos anos, parte deles passou por conflitos e guerras internas após a independência de Portugal, ocorrida em meados dos anos 70. Enquanto isso, na Ásia, a ocupação militar indonésia ao Timor Leste só foi encerrada em 1999, quando o território finalmente virou país livre. À exceção de Portugal, todos os outros países lusófonos têm índices de desenvolvimento humano situado nas categorias médio e baixo. Diante de tanta turbulência, a preocupação em fortalecer a língua por meio da ortografia parece inócua. Para o professor e integrante da Academia Cearense de Língua Portuguesa, José Alves Fernandes, o que vai dar mais fôlego à língua portuguesa não é a iminente reforma, mas sim um forte investimento em educação, capaz de aprofundar o domínio do idioma entre seus próprios falantes. A situação é bem diferente da ocorrida na França, que soube trabalhar a difusão do francês com suas ex-colônias. "O tratamento dado aos estudos lingüísticos na França é muito mais sério, muito mais sedimentado, muito mais científico", afirma ele. José Alves fala com a experiência de quem já ensinou Letras em quase todas as universidades cearenses.
Aos 76 anos, já aposentado tanto pela UFC e pela Uece, ele se dedica há dez anos à escrita do Dicionário Cronológico da Língua Portuguesa, no qual rastreia a origem das palavras usadas pelo idioma. Entre a sua produção escrita, está a colaboração para o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e a elaboração do Dicionário de Formas e Construções Opcionais da Língua Portuguesa (Ed. UFC). (Amanda Queirós)
O POVO - Uma das justificativas colocadas para essa reforma é a busca por uma uniformização da escrita da língua portuguesa. No entanto, apesar da diminuição das diferenças, ainda vai existir um "português brasileiro" e um "português lusitano". O senhor concorda com a afirmação de que essas divergências enfraquecem a língua no cenário internacional? José Alves Fernandes - Toda língua falada por grandes contigentes tem as suas variantes. Isso não seria motivo para diminuir o crédito de uma língua internacionalmente. O próprio inglês, que é a primeira das línguas mais faladas depois do chinês, tem as suas diferenças. O inglês americano não é igual ao britânico. O fato de haver divergências entre Brasil e Portugal não é motivo para descredenciar ou desvalorizar a língua portuguesa.
OP - Os franceses trabalham muito a questão da língua por meio da francofonia. É possível pensar na existência de uma lusofonia que englobasse todos os países falantes da língua portuguesa?
José Alves - Há uma diferença muito grande no tratamento da língua feita pelos países de língua portuguesa e pela França. O tratamento dado aos estudos lingüísticos na França é muito mais sério, muito mais sedimentado, muito mais científico. O que falta realmente quanto à língua portuguesa são maiores estudos e maiores investimentos para que ela possa atingir um nível comparável ao do francês e ao do inglês. O que nos está faltando é a melhoria do nível de educação, dos investimentos em educação. Essa é a grande verdade.
OP - A que ou a quem serviria uma universalização desse porte?
José Alves - Acho que a proposta desse projeto é aventurosa, excessivamente otimista e um pouco quixotesca. Estamos muito longe de aspirar a um nível de competência lingüística que se aproxime do inglês, do francês ou mesmo do italiano. O que o Brasil precisa fazer é realmente estudar. A gente sente que uma das grandes motivações desse projeto é a preocupação geopolítica de promover o Brasil em nível internacional através da língua. Vamos demorar muito a chegar lá. O projeto tem em vista uma uniformização ortográfica. Ortografia remete diretamente à leitura. São 180 milhões de brasileiros, mas quantos sabem ler? Diz-se que temos ainda 20 milhões de analfabetos, mas grande parte dos considerados alfabetizados são semi-analfabetos. Eles não estão inseridos no público que lê. Se partirmos para a África, a situação é pior ainda. A idéia de mais de 200 milhões falando e escrevendo o português é um mito. Falam, mas não estão inseridos naqueles beneficiários da leitura e que tem algum interesse quanto à uniformização gráfica. Por isso sou um crítico meio azedo desse projeto. Acho muito irreal.
OP - A língua é muito viva e se transforma espontaneamente a todo momento. Já as regras normativas parecem querer estancar esse processo. Como é possível haver um diálogo mais próximo entre a oralidade e a linguagem escrita?
José Alves - Já melhorou um pouco nos últimos anos. Até 1930, a língua escrita era padrão para se aprender português. Pior ainda: esse padrão era o português lusitano. Até essa data, as nossas gramáticas normativas só citavam autores portugueses. Uma frase de autor brasileiro não era digna de ser citada. Faz pouquíssimo tempo que o Brasil se preocupou com essa noção de português brasileiro. No fim do século passado, houve uma guerra terrível contra (o escritor José de) Alencar, porque ele tomou "certas liberdades" para escrever um português mais do Brasil que de Portugual. Os modernistas fizeram grandes esforço para aproximar, para diminuir a distância entre o português falado e o escrito. Por conta disso, a oralidade ganhou muito peso, mas ainda estamos muito longe de ter uma literatura puramente brasileira e de alto nível. OP - Vivemos um momento no qual as imagens têm muita força na comunicação. Talvez até por isso essa reforma não esteja repercutindo tanto quanto a de 1971 e a de 1943. Como a língua portuguesa pode reagir frente a esse momento de culto da imagem? José Alves - Acho que deve haver um esforço muito grande da parte dos responsáveis pela educação para melhorar o nível de conhecimento e de domínio das duas variantes da língua - a padrão e a coloquial. Há os momentos em que se deve usar a língua chamada padrão - situações formais, altamente valorizadas pela estética, pela literatura, pela poesia. Por outro lado, a língua falada deve ter também o seu respaldo. Como professor, costumo ouvir uma série de problemas e fico estarrecido como é que havendo tanta facilidade de se ensinar, de se promover a língua, há tanta falta de interesse tanto por parte de quem ensina - e aí vai a acusação cair sobre a escola de uma maneira geral - como daqueles que dirigem as TVs, as rádios. Algumas emissoras tem até um manual de orientação de língua portuguesa, mas, mesmo assim, acho que a coisa poderia ser bem mais bem tratada.
OP - Quais seriam as possibilidades para que ela fosse mais bem tratada?
José Alves - A partir da qualificação dos programas, dos textos de noticiários, de novelas... Acho que deveria haver um pouco mais de preocupação com a forma. Muitas vezes a mensagem não é entendida porque é mal expressa. Quanto mais esforço se fizer para se produzir um texto melhor, quanto mais se estará colaborando para o bom entendimento da mensagem veiculada. O texto nunca pode estar desvinculado de um contexto, do entorno, do momento da ação, da realização dos fatos.
OP - A maioria dos usuários da língua portuguesa a utilizam, basicamente, para a fala. Será difícil incorporar essas novas regras já que tanta gente não escreve ou lê?
José Alves - Não existe só uma gramática. Existem várias gramáticas. Existe a padrão para aquelas situações oficiais, formais e altamente estéticas como a literatura. Existe uma outra gramática coloquial. É a língua falada. Ela tem outra gramática. Ninguém exige da língua falada o mesmo padrão da língua escrita. Muitas coisas que se dizem erradas não são erradas se considerarmos isso: não está errado pelo contexto a que você se referiu, não está errado se afastar do português padrão em situações informais. É preciso ter esse senso de oportunidade, de colocação e de saber onde se está pisando. Não vai haver essa preocupação de querer incluir na gramática normativa as regras da fala. Aos poucos certas construções vão se incorporando ao uso geral. Desde que se torne uso geral, deixa de ser formal. O uso é que dá a última palavra.

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